Programa tem como objetivo criar incentivos para produtores rurais contratarem moradores de rua. Defensora Pública e Padre Júlio Lancellotti temem que os empregos se tornem análogos à escravidão e afirmam que a política de expulsão ofende o direito constitucional à liberdade.
O governo de São Paulo quer mandar moradores de rua, a maioria da capital paulista, para o campo, no interior do estado. O programa “Saindo das Ruas”, que deve ser lançado nos próximos dias, tem como objetivo criar incentivos para os produtores rurais contratarem pelo menos uma pessoa em situação de rua.
Em contrapartida, o estado propõe comprar a produção do que for plantado. O custeio do transporte dos moradores de rua será feito pelo estado. O governo diz ainda que serão abertas vagas em outras atividades econômicas, como na gastronomia.
O projeto se baseou na lei que criou o programa paulista da agricultura de interesse social, de 2011, e que, segundo o governo, não está sendo cumprida. O objetivo era estimular o cultivo familiar destinando 30% da verba para a compra de alimentos em produtos da agricultura familiar.
“O campo ele traz muito isso, uma qualidade de vida, a gente está falando de produções orgânicas de famílias agricultoras que tenham o interesse de poder trabalhar com essas pessoas como mão de obra qualificada e, obviamente, com salário bem pago”, disse Filipe Sabará, secretário executivo de desenvolvimento Social.
Ao g1, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) disse que não foi procurada pelo governo do estado de SP para debater o projeto.
A coordenadora-auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, Fernanda Balera, ainda não teve acesso ao programa, mas afirma que se preocupa com alguns pontos da proposta:
“prática de convencer o morador de rua a se mudar
ausência de informação sobre capacitação dos trabalhadores
remuneração e condições de trabalho
possibilidade de empregos análogos à escravidão
O coordenador da Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio Lancellotti, tem as mesmas questões.
“Como seriam feitos os contratos? As pessoas teriam residência onde? Como seriam alojadas, seriam registradas? Como seria feito esse registro e quais os direitos trabalhistas que as pessoas teriam? Qual o salário? Os produtores estariam dispostos a receber? Seria uma pessoa só por produtor? Tudo isso precisa se saber antes”.
O governo afirmou que que vai atuar junto com os órgãos de fiscalização das condições de trabalho.
O procurador de Justiça e professor de Direitos Humanos Eduardo Dias Ferreira lembra que nem todos estão em situação de rua por falta de emprego, e que um programa assim precisa garantir os direitos dos trabalhadores.
“A questão do emprego, do trabalho, é uma das portas de saída para população em situação de rua, mas para essa solução nós precisaríamos pensar na complexidade do tema, o que leva essas pessoas e pensar nesse trabalho também com as condições de trabalho. Ela implica, por exemplo, em ter empregados em pouca quantidade, porque a maior parte dessa produção é feita pela família e muitas vezes esse próprio produtor já tem sua condição de moradia, ele nem mora mais na propriedade com medo de roubos e assaltos, mora na cidade, vai trabalhar durante o dia na propriedade, como é a condição de alojamento dessas pessoas?”, questiona.
Vagas
Pelas contas da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento, são 187 mil famílias agricultoras em São Paulo, e elas estariam dispostas a empregar mais gente, desde que a compra de parte da produção fosse garantida.
Como são quase 86 mil moradores em situação de rua no estado, 52 mil na capital, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas da UFMG, matematicamente, teria vaga para todos.
“No estado de São Paulo, conseguir fazer isso com 86 mil pessoas, eu acho que é um pouco utópico, porque nem todas as pessoas têm condições de trabalhar em produção agrícola ou trabalhar em condições de plantações, de colheita. Existem pessoas com problemas mentais, físicos. Existem mulheres com crianças que estão radicadas aqui, que estão nas escolas e que têm já alguma atividade de questão reciclável”, disse padre Júlio.
“É uma cultura urbana que é diferente de uma cultura rural. Por exemplo, só acolhidas na Missão Belém tem mais de 500 pessoas com problemas de saúde. Essas pessoas não vão ter resposta indo para a produção agrícola”, completou.
A defensora Fernanda Balera lembra ainda que “a política de expulsão de pessoas em situação de rua ofende o direito constitucional à liberdade e a diretriz da Política Estadual de Atenção Específica para a População em Situação de Rua (art. 4º, IX, da Lei Estadual 16.544/17) de respeito às singularidades de cada pessoa em situação de rua, com observância do direito de livre circulação entre municípios e a permanência nos municípios que forem mais convenientes à manutenção de sua vida e dignidade, conforme opção de cada indivíduo.
A Resolução nº 40/20 do Conselho Nacional de Direitos Humanos estabelece em seu art. 13 que ‘Configura violação de direitos humanos a suspensão e expulsão de pessoas em situação de rua dos serviços públicos como forma de solução de conflitos’, o que evidentemente se aplica ao caso presente.”
O que diz o governo de SP
“O Governo de SP tem realizado uma série de medidas para o acolhimento aos dependentes químicos das ruas da região Central da Capital. As secretarias de estado têm trabalhado de forma integrada, com o desenvolvimento de diversas linhas de cuidados que possam oferecer dignidade e oportunidades para as pessoas.
Com relação à população de rua, a Secretaria de Desenvolvimento Social está estruturando um programa que tem como eixo capacitação, emprego e renda, seja na zona rural ou nas cidades. A iniciativa que vem sendo definida em parceria com as demais pastas, leva em consideração questões de acolhimento, acompanhamento, segurança e geração de renda”.